Trem Republicado

Os Santos Algozes e a profecia do baixo clero

Por Gio Carvalho em 04/08/2023 às 16:22:38

Não podendo simplesmente desfazer o equívoco de fundar a humanidade, certo dia desceram dos céus os anjos vingadores de um antigo criador encoleirado, raivoso, para por fim à iniquidade de suas criaturas. Exterminá-los não foi uma solução prática, como já havia tentado antes, em alguns episódios mal sucedidos. Era preciso extinguir o livre arbítrio, encoleirando essa gente a certas regras.

Como a criação é um evento misterioso, a gente baixa não possuía a capacidade de entender seus mistérios, e se portava conforme suas niveladas interpretações. Fundou-se a Igreja dos Santos Algozes, cuja missão era corrigir a sociedade pela dor e castigo. Mas para punir, era necessário um mínimo de regras, para que a humanidade entendesse, se conformasse e colaborasse com o árduo trabalho de corrigir o incorrigível, as paixões, as reações e as mazelas dos minúsculos. Rebeldes e desconfiados, não entenderam de pronto se eram novos enganadores, dentre tantos que já se revelaram, ou se eram mensageiros do Único.

Os Santos Algozes, longe de apreciar a ordem divina, se desgostavam da repugnante gente, seu cheiro enojava, seus costumes, sua mesquinhez, e até mesmo os mais altivos sentimentos de perdão ou justiça causavam risos, como se fossem pequenos truques de um animalzinho querendo chamar a atenção do dono. Foi preciso negociar com alguns deles, os mais ambiciosos, para que as regras se espalhassem, fossem ensinadas, obedecidas, que se castrassem os criativos, se açoitasse os rebeldes até quebrar-lhes o espírito, e tudo entrasse na fôrma que se esperava. Estes escolhidos nunca atingiriam o Alto, nem mesmo conviveriam com os Santos Algozes, mas receberiam afagos, confortos, condições melhores que os pequenos. E tomaram gosto como casta servil, pois tinham à sua mercê também o destino de seu próprio igual, do qual teria que se distinguir.

Como é impossível se regrar a multiplicidade de comportamentos humanos, sendo cada um único em seu jeito de ser - mas não Único -, os médios multiplicaram também as regras. Não raro, de aplicação imediata fazendo cessar a existência, mas sendo a regra levar essas almas a serem julgadas pelos entediados e bem fornidos santos algozes, para que se deliciassem no seu afazer, exigindo tributo, brilhando entre o sujo, exibindo pedante sapiência (se a mais Alta tem apenas uma Fonte) e banqueteassem com o sangue de muitos, com as lágrimas das mães, que a carne amaciada no malhete lhe fosse mole de digerir e os ossos servissem de estrutura para seus templos de dor. Das fezes tintas de vermelho, que tem ainda a centelha da divindade e é mais do que merecem os simplórios, se escreviam novas regras como grande revelação.

A empresa ia bem, mal há espaço para tantos torturados, a expansão é contínua pois os tutelados não param de errar, pois a cada dia se cria um erro novo. De tanto normatizar tudo, de tanto fazer obedecer, de tanto medo da regra e da misteriosa e imprevisível aplicação dela, pela antiguidade da missão, pode-se dizer que a tarefa vai bem, em suas aparências, que os cordões que movem os articulados estão bem tensos, que os gatilhos estão bem instalados.

Também imprevisíveis criaturas, por serem defeituosas como tudo que é criado, encontram meios de despertar dessa hipnose traumática outros membros da casta servil. Não tendo estatura para demolir seus templos e depenar essas aves egocêntricas, desapeando-as de seus poleiros; negam-se a entregar-lhes alimento. Salvam um ou outro da fogueira, nega-se o sangue, retira-se da estrutura um ou dois ossos que porventura, um dia provocará rachaduras na estrutura.

Os Encolerados à maneira de seu Mestre, que venham rapinar pessoalmente, despidos de sua sedosa capa. Que tentem a sorte de pastar sobre nossas cabeças. Um dia encontrarão suas penas em chamas e arderão em imensa fogueira, pois foi o Fogo que um Dissidente nos entregou, como única arma contra os caprichos dos Santos Algozes. A luz imensa da chama, enfim, revelará que o fogo tudo purifica e que a terra deve estar limpa, sem estruturas arcaicas, para que levantem novos alicerces.

Assim, livrando os grilhões, com os olhos nivelados à altura do corpo, não haverá mais castas, nem servidão. Mistérios da Fé.

Um dia serão reveladas coisas ocultas que ninguém conhece. As iniquidades dos Santos Algozes e sua Casta Servil.

Profecias do baixo clero.

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GIO CARVALHO é advogado

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