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Chuvas torrenciais, clima, desigualdade e política: conexões que precisamos fazer - por Jorge Abrahão

Por Wellington Caposi em 21/02/2023 às 08:12:54

O encontro casual, na Serra do Mar, entre correntes úmidas e quentes do Amazonas e uma frente fria vinda do sul despejou em pouco tempo a enormidade de 600 mm de água em forma de chuva (isso equivale a 600 litros por metro quadrado) em algumas cidades do litoral norte paulista. As consequências foram trágicas, sobretudo em vidas perdidas e sofrimentos além também de perdas materiais.

Eventos climáticos extremos se repetem há anos, ora aqui e ora ali, cada vez mais intensos, mas somos incapazes de analisá-los e aprender, de fazer a relação causa-efeito, focados que estamos em nossas vidas individuais, na sobrevivência imediata, no consumismo e nas lutas pelo poder. O modelo se impõe e a ordem é produzir e consumir: o resto deixemos para depois. Foi assim com Santa Catarina no ano passado e é assim com o litoral norte.

Ainda chamamos esses eventos de "desastres naturais", como se fossem uma fatalidade inevitável, como se nada tivéssemos a ver com isso e a natureza fosse a única responsável. E assim lavamos as mãos e continuamos nos enganando e nos iludindo, pensando que a solução não depende de nós. Preferimos fingir que tudo é natural e, dessa forma, acobertar nossa responsabilidade na escolha de um modelo de desenvolvimento predatório, que consome nossos recursos naturais sem limites e recebe respostas cada vez mais contundentes da própria natureza, que não sabemos interpretar.

Enquanto isso, aqueles que têm poder político e econômico - e na verdade, são os maiores responsáveis ??pelo aumento desses eventos climáticos extremos - buscam lugares protegidos em seus países e no mundo, na ilusão de que conseguirão escapar ilesos. Eles podem até ganhar um pouco de tempo, mas não mais do que isso. Seria melhor enfrentar o problema de frente: Freud explicou há muito o processo de negação. A falta de conscientização da maioria dos governos, empresas e sociedade em relação às mudanças climáticas e seus impactos faz com que tragédias como a ocorrida neste fim de semana se repitam com mais intensidade e velocidade. Há décadas, dados mostram que os eventos climáticos extremos vêm aumentando, e a reação, nas diversas esferas de Governo - nacional e internacionalmente -, não está à altura da gravidade do problema.

Enquanto os interesses individuais dos países e grandes setores econômicos estiverem à frente dos interesses coletivos, continuaremos vivendo tragédias, lamentando mortes, emocionando-nos, solidarizando-nos, chorando, mas sem mudanças estruturais que impeçam sua repetição. Esses eventos climáticos violentos estão diretamente relacionados às ações humanas e são uma resposta ao comportamento coletivo irresponsável e arrogante.

É importante fazermos essas conexões para que as escolhas e prioridades de ações sejam definidas considerando os impactos que causamos no meio ambiente. Nesse sentido, governos e empresas têm papel fundamental. Os bancos, ao financiar projetos sem considerar o impacto ambiental de médio e longo prazo, são os responsáveis ??pelas tragédias que daí decorrem.

Chegou a hora da consciência de que estamos interligados e nossas tomadas de decisão impactam, sim! O Consumo de produtos não certificados nas cidades, como carne, madeira, soja e ouro, está relacionado às tragédias. O desmatamento para a expansão da fronteira agrícola e pecuária, que chega à nossa mesa na forma de carne, às nossas casas como madeira para construção ou móveis, aos nossos corpos em jóias de ouro, está relacionado às enchentes. Conhecer a origem do que consumimos e fazer escolhas conscientes é um dos fatores que podem contribuir para a redução dos impactos. Identifique empresas e financiadores também.

As prefeituras precisam evitar a ocupação de áreas de risco e oferecer alternativas dignas de moradia à população vulnerável. Podem e devem fazer compras públicas sustentáveis: a madeira dos prédios públicos deve ser certificada; os alimentos servidos nos lanches e refeições podem ser rastreados e livres de agrotóxicos; as áreas verdes, ampliadas; a frota de ônibus pode funcionar com combustível limpo; lixões a céu aberto substituídos por aterros sanitários; reciclagem de resíduos sólidos e compostagem orgânica, universalizada; a redução da distância entre casa e trabalho, reduzida.

O Estado é responsável por um terço da economia e deve usar seu poder para induzir mudanças. No mundo, temos o desafio de uma governança global que assuma o papel de dar diretrizes e controlar, com medidas vinculantes e obrigatórias, para o alcance das metas de redução de emissões.

Não podemos mais continuar no jogo apenas passando de bom moço e com boas intenções. A ligação entre perda de vidas, lágrimas e sofrimento devido ao desdém de governos e corporações precisa ser feita urgentemente. Caso contrário, continuaremos a enxugar as lágrimas após cada tragédia, para acordar no dia seguinte, mal dormindo, tomar um café e seguir com nosso trabalho diário até chegar a nossa vez.

Desigualdade, meio ambiente, economia e política são gêmeos siameses, intrincados na mesma origem de um Estado patrimonialista e com marcas ainda insuperáveis ??de escravidão, que teima em viver de favores, emendas secretas, vergonhosos sigilos seculares. Uma das consequências disso é o que estamos vivendo neste final de semana. Até quando será que continuaremos nessa insana jornada individual, desprezando o presente que recebemos da natureza na forma de razão e emoção?

É hora de mudar.

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JORGE ABRAHÃO; diretor presidente do Instituto Cidades Sustentáveis, conselheiro do Global Compact da Organização das Nações Unidas, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo e colunista da Folha de São Paulo.

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