Trem Republicado

UMA SAÃDA HONROSA PARA O COMBATE À CORRUPÇÃO? por Alfredo Attié

Por Wellington Caposi em 02/03/2021 às 20:10:40

"O povo experimenta infelicidade, quando aqueles em quem confia escondem sua própria ambição, fingindo pregar grandes valores"

A Operação Lava-jato acabou. Teve origem no julgamento do processo do mensalão, passou por atividade de varas judiciais especializadas, apoio de instâncias do Poder Judiciário, engajamento apaixonado de parcela das classes médias, ganhou destaque nos noticiários, realizou diligências e prisões espetaculares. Foi a face mais expressiva de ativismo judicial e judicialização da política, termos que se tornaram de domínio popular. Em seus momentos mais vibrantes, contou com uma greve de fome contra o princípio constitucional da presunção de inocência, e uma grande comemoração, na qual retratos de alguns de seus personagens formavam o pano de fundo de palco em que se exibiam mulheres seminuas, enquanto se oferecia bebida e se soltavam fogos.

As denúncias de abusos dessa operação não foram levadas a sério até que o conteúdo de mensagens trocadas entre alguns de seus membros foi revelado pela mídia, a partir de material hackeado. Daí em diante, a credibilidade de seus líderes minguou, muito embora a popularidade se tivesse mantido ao ponto de alçar um de seus integrantes a Ministério do atual Governo. Agora, porém, a opinião pública - mesmo a que permanece fiel ao lavajatismo - não tem dúvida de que a operação não seguiu o percurso de perfeição que proclamava. Não há motivo para negar que o lavajatismo inflamou as paixões brasileiras e ofereceu o que qualquer povo raramente possui: a sensação, malgrado ilusória, de vitória contra o poder. Ilusória porque se baseava numa operação cuja legitimidade se discute ao se conhecerem reais objetivos e métodos. Sobretudo, porém, porque o resultado da operação foi lançar o povo para mais longe do espaço de poder, desde o impeachment até as eleições que o sucederam.

Ao gosto amargo dessas consequências se une, hoje, a desesperança em razão do desprezo pelo combate à pandemia e pelos direitos que a Constituição de 1988 havia trazido à nação. Existe opção para esse modo de fazer que torna infeliz nosso destino?

Montesquieu dizia que um dos valores da democracia é a frugalidade, isto é, o sentimento de satisfação com o que se tem. Seu oposto é a ganância, a paixão por possuir tudo o que se deseja. Podemos satisfazer nossos desejos de modos mais ou menos honestos. A corrupção é um deles, e se caracteriza pelo abuso do poder que se tem para se obter o que se quer. Abuso sobretudo político, muito embora possa assumir forma social ou econômica – a imagem mais mesquinha, troca de dinheiro pelo favor ilegal.

Como abusar do poder pressupõe a presença de uma relação de submissão, a corrupção compõe o cotidiano quando se vive uma situação estrutural de desigualdade. De regra, o poderoso submete a todas as pessoas de sua relação, e, quando quer avançar sobre outros campos, vai usar seu status para novas conquistas e ficar por cima de todas as situações, no conforto de (pre)dominar. O mundo de hoje - não apenas o Brasil - vive essa situação perene de desigualdade e corrupção. O pensamento liberal da era de Montesquieu achava que a mistura de ganância, abuso e corrupção era inevitável porque fazia parte da natureza humana. Todo mundo queria ter poder para satisfazer desejos e abusaria desse poder para que a satisfação fosse indefinida. Os outros ou a sociedade pouco importavam. Se isso era inevitável, pensou-se, então, num mecanismo de contenção do poder - não dos desejos, pois a frugalidade era qualidade de seres imaginários. Num desenho circular, seriam criados mecanismos de um poder impedir o avanço do outro. Esse era o coração da doutrina da divisão dos poderes: a contenção recíproca. Lamentavelmente, esse objetivo foi esquecido. Depois que se criaram as instituições em que se encarnava essa distribuição de poderes, o sentido do controle foi deixado de lado, em nome do corporativismo e - triste sina dessa visão de mundo - a ganância, o abuso e a corrupção alcançaram o exercício não apenas dessas novas instituições, mas daqueles que nelas trabalhavam.

Mas Montesquieu pregava uma outra doutrina, hoje esquecida: ganância, abuso e corrupção poderiam desaparecer numa sociedade que fosse menos desigual e mais livre no curso dos desejos, desde que modulados pelo sentimento de igualdade. A educação e a cultura eram mais baratas e eficazes do que as pesadas instituições. Cultura e educação permitem que o povo seja dono de sua história, controlando em última instância os que falsamente se proclamam salvadores da nação.

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ALFREDO ATTIÉ, filósofo, jurista e escritor. Titular da cadeira San Tiago Dantas na Academia Paulista de Direito, que preside. Exerce a função de desembargador, em São Paulo.

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