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Pandemia agravou as tensões entre famĂ­lia e escola. Agora, o professor Ă© cobrado em mĂșltiplas frentes

Por Tânia Resende em 28/05/2023 às 04:12:05

Dez anos atrĂĄs, comentei sobre a instalação de cĂąmeras em instituições educativas, para as famĂ­lias acompanharem a rotina escolar dos filhos. Destaquei a complexidade da relação entre famĂ­lias e escolas, marcada por mistura de papéis, tensões e inseguranças mĂștuas. Não podia, então, imaginar o quanto tais caracterĂ­sticas seriam intensificadas nos anos seguintes, em decorrĂȘncia de vĂĄrios fatores; dentre eles, uma pandemia de consequĂȘncias avassaladoras em diversos Ăąmbitos.

A Educação foi uma das ĂĄreas mais afetadas. Com as escolas fechadas, processos de aprendizagem e de socialização foram interrompidos e/ou transformados. Se o embaralhamento das funções entre famĂ­lia e escola jĂĄ era uma tendĂȘncia, o ensino remoto a intensificou. As cĂąmeras, agora, invadiam escolas e lares, transmitindo imagens mĂștuas. Mães e pais viram-se na premĂȘncia de gerenciar, em suas casas, aplicativos, espaços e tempos de trabalho pedagógico. E em meio a milhares de mortes, risco de contaminação, crise econômica.

Esse ainda era, no entanto, o lado privilegiado da cena.

No lado menos favorecido, o que se aguçou não foi a imbricação das esferas familiar e escolar, mas a distĂąncia entre elas. Não havia aulas nem cĂąmeras em casa. Em algumas, chegavam atividades pela TV ou impressas. Em outras, a escola não chegava sob nenhuma forma. Em vĂĄrias, chegavam violĂȘncia doméstica, fome, abandono.

No Brasil, todo esse processo foi enfrentado por uma sociedade dividida. Não houve consenso social em relação a questões centrais, como a importĂąncia das vacinas ou o valor da própria vida humana. Às mortes e às mazelas da doença vieram se somar as feridas abertas por um cenĂĄrio de disputas polĂ­ticas, sociais, culturais, religiosas, frequentemente marcadas pelo cultivo do medo e do ódio.

Tudo isso tem reverberado na relação famĂ­lia-escola que, em muitos casos, mostra-se ainda mais tensionada. Relatos de agressividade e violĂȘncia no ambiente escolar se multiplicam. Os recentes ataques a escolas no Brasil, tendo mĂșltiplos condicionantes, não deixam de simbolizar, tragicamente, que algo não vai bem na vida coletiva. A escola, como espaço onde se cruzam culturas e relações, torna-se cenĂĄrio de manifestação do sofrimento social.

No campo da aprendizagem, lacunas preocupantes são recorrentemente constatadas. Para muitas crianças e jovens, o frĂĄgil vĂ­nculo com a escola se esgarçou ainda mais. AbsenteĂ­smo e evasão aumentam: numerosas famĂ­lias não conseguem assegurar nem sequer a frequĂȘncia escolar dos filhos.

Seja no Ăąmbito dos sistemas de ensino, seja no interior de cada estabelecimento, esforços coletivos de superação das dificuldades, necessĂĄrios, dependem de uma liderança eficaz e um clima de cooperação e positividade. Mas os movimentos de reorganização tĂȘm sido lentos, dispersos, descoordenados. Sobram testes e planilhas, faltam proposições claras e mobilizadoras. FamĂ­lia e escola tĂȘm dificuldade de ir além das cobranças mĂștuas. Professores sentem-se demandados em mĂșltiplas direções e vigiados de diversas formas, mas pouco valorizados.

Quando o fechamento das escolas evidenciou a falta que elas fazem, pensou-se que isso resultaria em melhor relação com as famĂ­lias, na volta das aulas presenciais. Pode estar acontecendo em alguns contextos, capazes de incorporar lições positivas da pandemia, como o uso de tecnologias digitais para a comunicação escola-famĂ­lia, ou a maior compreensão, por docentes, da realidade de estudantes cujas casas visitaram para levar atividades pedagógicas. Porém, no conjunto, observa-se um tipo de cansaço social que atinge famĂ­lias e educadores escolares.

É preciso instituir uma nova dinĂąmica de valorização da escola, da educação e da cultura, na qual esses sujeitos sintam o reconhecimento do quanto sua diligĂȘncia e sua boa interação são imprescindĂ­veis na gestão de nosso presente e na gestação de nosso futuro como sociedade.

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TÂNIA RESENDE, é professora da Universidade Federaol de Minas Gerais e pesquisadora do Observatório Sociológico FamĂ­lia-Escola (OSFE/FaE/UFMG).

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