Pandemia agravou as tensões entre família e escola. Agora, o professor é cobrado em múltiplas frentes
Dez anos atrás, comentei sobre a instalação de câmeras em instituições educativas, para as famÃlias acompanharem a rotina escolar dos filhos. Destaquei a complexidade da relação entre famÃlias e escolas, marcada por mistura de papéis, tensões e inseguranças mútuas. Não podia, então, imaginar o quanto tais caracterÃsticas seriam intensificadas nos anos seguintes, em decorrência de vários fatores; dentre eles, uma pandemia de consequências avassaladoras em diversos âmbitos.
A Educação foi uma das áreas mais afetadas. Com as escolas fechadas, processos de aprendizagem e de socialização foram interrompidos e/ou transformados. Se o embaralhamento das funções entre famÃlia e escola já era uma tendência, o ensino remoto a intensificou. As câmeras, agora, invadiam escolas e lares, transmitindo imagens mútuas. Mães e pais viram-se na premência de gerenciar, em suas casas, aplicativos, espaços e tempos de trabalho pedagógico. E em meio a milhares de mortes, risco de contaminação, crise econômica.
Esse ainda era, no entanto, o lado privilegiado da cena.
No lado menos favorecido, o que se aguçou não foi a imbricação das esferas familiar e escolar, mas a distância entre elas. Não havia aulas nem câmeras em casa. Em algumas, chegavam atividades pela TV ou impressas. Em outras, a escola não chegava sob nenhuma forma. Em várias, chegavam violência doméstica, fome, abandono.
No Brasil, todo esse processo foi enfrentado por uma sociedade dividida. Não houve consenso social em relação a questões centrais, como a importância das vacinas ou o valor da própria vida humana. Às mortes e às mazelas da doença vieram se somar as feridas abertas por um cenário de disputas polÃticas, sociais, culturais, religiosas, frequentemente marcadas pelo cultivo do medo e do ódio.
Tudo isso tem reverberado na relação famÃlia-escola que, em muitos casos, mostra-se ainda mais tensionada. Relatos de agressividade e violência no ambiente escolar se multiplicam. Os recentes ataques a escolas no Brasil, tendo múltiplos condicionantes, não deixam de simbolizar, tragicamente, que algo não vai bem na vida coletiva. A escola, como espaço onde se cruzam culturas e relações, torna-se cenário de manifestação do sofrimento social.
No campo da aprendizagem, lacunas preocupantes são recorrentemente constatadas. Para muitas crianças e jovens, o frágil vÃnculo com a escola se esgarçou ainda mais. AbsenteÃsmo e evasão aumentam: numerosas famÃlias não conseguem assegurar nem sequer a frequência escolar dos filhos.
Seja no âmbito dos sistemas de ensino, seja no interior de cada estabelecimento, esforços coletivos de superação das dificuldades, necessários, dependem de uma liderança eficaz e um clima de cooperação e positividade. Mas os movimentos de reorganização têm sido lentos, dispersos, descoordenados. Sobram testes e planilhas, faltam proposições claras e mobilizadoras. FamÃlia e escola têm dificuldade de ir além das cobranças mútuas. Professores sentem-se demandados em múltiplas direções e vigiados de diversas formas, mas pouco valorizados.
Quando o fechamento das escolas evidenciou a falta que elas fazem, pensou-se que isso resultaria em melhor relação com as famÃlias, na volta das aulas presenciais. Pode estar acontecendo em alguns contextos, capazes de incorporar lições positivas da pandemia, como o uso de tecnologias digitais para a comunicação escola-famÃlia, ou a maior compreensão, por docentes, da realidade de estudantes cujas casas visitaram para levar atividades pedagógicas. Porém, no conjunto, observa-se um tipo de cansaço social que atinge famÃlias e educadores escolares.
É preciso instituir uma nova dinâmica de valorização da escola, da educação e da cultura, na qual esses sujeitos sintam o reconhecimento do quanto sua diligência e sua boa interação são imprescindÃveis na gestão de nosso presente e na gestação de nosso futuro como sociedade.
________________________
TÂNIA RESENDE, é professora da Universidade Federaol de Minas Gerais e pesquisadora do Observatório Sociológico FamÃlia-Escola (OSFE/FaE/UFMG).