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A Ășltima trincheira da escravidão

Durante os 350 anos da escravidão, intelectuais, polĂ­ticos, padres, empresĂĄrios, trabalhadores brancos, viam a escravidão dos negros com a mesma naturalidade como hoje vemos a desigualdade na qualidade da educação, conforme a renda e o endereço da criança.

Por Cristovam Buarque em 27/03/2023 às 14:13:18

Quem conhece o livro "A Última Trincheira da Escravidão", publicado pela Editora da Universidade Zumbi dos Palmares, sabe que as recentes denĂșncias de escravidão são consequĂȘncia de uma fonte inesgotĂĄvel de escravos dentro do Brasil: a desigualdade como a educação é oferecida. Antes, os escravos eram arrancados da África, agora, são arrancados da escola. A falta de educação necessĂĄria para trabalho qualificado leva brasileiros a emprego em condições similares à escravidão.

Em 1871, os escravocratas aceitaram a Lei do Ventre Livre ao perceberem que ela soltava, mas não libertava aos filhos das escravas. Para soltar, basta retirar as algemas; para libertar, precisa dar um mapa para que o solto saiba orientar-se no caminho que escolher. Esse mapa vem da escola. Depois de 17 anos, repetiram a mesma estratégia, aprovando a Lei Áurea, que soltou, mas não libertou os escravos, por falta de escola que lhes daria o mapa para um emprego, renda, alternativas sociais.

O Brasil precisou esperar o século XXI para ter uma lei que assegura vaga na escola a toda criança brasileira, a partir dos 4 até os 17 anos de idade. Mesmo assim, a lei não é cumprida e a Ășltima trincheira da escravidão foi mantida sob a forma da escola desigual: "escola casa grande" para alguns, e "escola senzala", para muitos. Dezenas de quase-escravos foram soltos nas Ășltimas semanas, mas, por falta de educação, milhões só encontram trabalho em condições semelhantes à escravidão. Eles não foram buscados na África, não podem ser vendidos, mas são condenados ao desemprego ou renda insuficiente, e são submetidos a formas escravocratas de trabalho.

Felizmente, ainda temos o Ministério PĂșblico desfazendo estas condições, mas estão apenas soltando, não estão libertando os escravos atuais, e deixam milhões de outros em situação semelhante, como forma para sobrevivĂȘncia. A Ășltima trincheira da escravidão continuarĂĄ enquanto o Brasil não tiver um Sistema Único Nacional PĂșblico de Educação de Base para todos brasileiros, com a mĂĄxima qualidade, da primeira infĂąncia até o final do ensino médio, alfabetizando para a contemporaneidade, independente da renda e do endereço.

A partir dos anos 1860, a população brasileira começou a se mobilizar pela Abolição da Escravatura, mas não se vĂȘ movimento parecido para completar o que foi feito naquela época, eliminando agora a Ășltima trincheira da escravidão. Talvez nem os educadores, nem o Ministério da Educação tenham consciĂȘncia desta responsabilidade, nem da contribuição dada pela Universidade Zumbi dos Palmares na tentativa de despertar o Brasil para o fato que soltar não é libertar.

Libertar é educar quem foi solto.

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CRISTOVAM BUARQUE é professor e foi senador, ministro e governador

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