Carnaval e tradições culturais brasileiras vivem conflitos com evangélicos

Os conflitos religiosos afetaram até mesmo o cotidiano de um símbolo tipicamente brasileiro: as bandejas de baianas de acarajé.

Carnaval e tradições culturais brasileiras vivem conflitos com evangélicos

Ao estender a mão para o porta-bandeira, não ouviu o samba-enredo - mas um elogio. Em vez dos holofotes, ele viu uma luz ainda mais brilhante. É assim que Lilico - da Mangueira - um dos grandes mestres da escola de samba, diz que relembra sua despedida da avenida, em 1990, em depoimentos a veículos evangélicos. Lilico é agora conhecido como pastor William, deixou a Verde e Rosa porque se converteu. Na época, o bar Só para Quem Pode, reduto boêmio no morro, havia dado lugar a uma igreja batista, e os mangueirenses lamentavam a perda de fiéis para a religião.


O caso foi prenúncio de um fenômeno que se expandiu ao longo dos anos. Desde então, os evangélicos representam no dias atuais cerca de um terço da população brasileira. Relatos de uma convivência conflituosa com festivais de cultura popular têm se tornado cada vez mais comuns, principalmente nas manifestações ligadas à herança africana.

O escritor e pesquisador Luiz Antonio Simas atribui para a expansão evangélica uma notória mudança no perfil da ala das baianaa de várias escolas de samba cariocas, que passou a perder integrantes para denominações pentecostais e neopentecostais. Essa perda pode ser um problema para as escolas de samba, pois, de acordo com o regulamento do desfile, é necessário ter um número mínimo delas na avenida.

"As escolas abriram espaço para gente que desfilava em outras alas, até mesmo para gente de fora da comunidade. Não tinha como fazer só com gente da comunidade. Se hoje você for ao Salgueiro achando que só vai encontrar velhas do morro, não vai", diz Simas.


No Carnaval de Pernambuco a questão é maracatu. Ao longo dos anos, grupos evangélicos surgiram no Recife. "É um grande desrespeito. Tem vários grupos que tocam maracatu para afastar as pessoas que gostam de jogar. Mas maracatu é o candomblé na rua", diz mestre Chacon Viana, do maracatu Porto Rico, que também é babalorixá. Maracatu não é apenas um gênero musical ou uma mera procissão. A tradição tem bases religiosas, com ligações tanto com o culto dos orixás quanto com os caboclos da jurema. É comum que os grupos mais tradicionais estejam ligados a uma casa de santo.

"Acontece que perdemos membros", diz mestre Chacon. "Em Porto Rico tinha uma menina que nasceu no maracatu, toda a família [dela] adulto. De repente, ela se converteu e levou todos para fora". Chacon atribui os ataques não apenas à intolerância religiosa, mas ao racismo. "Não posso entrar no ônibus e começar a cantar músicas do meu terreiro. Mas eles podem. A gente vive na defensiva o tempo todo", diz ele.


Os conflitos religiosos afetaram até mesmo o cotidiano de um símbolo tipicamente brasileiro: as bandejas de baianas de acarajé. O ofício desses profissionais foi tombado como patrimônio cultural do Brasil, em 2004, pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O registro leva em conta mais do que o acarajé ou a própria baiana: inclui também os modos de preparo dos alimentos, as roupas, o preparo das bandejas etc. Isso não impediu que algumas baianas convertidas a igrejas evangélicas se recusassem a usar os trajes típicos - ou mesmo uma tentativa, já frustrada, de renomear o acarajé como "bolinho de Jesus".

A guerra do acarajé levou à ação pública. Em 2015, a Prefeitura de Salvador publicou um decreto que obriga os donos de tábuas a usarem roupas típicas para a venda da iguaria.

"Conseguimos, aos poucos, começar a conversar. Temos baianas de acarajé evangélicas que se vestem bem. Com outras, mais radicais, tento explicar que a cultura é essa, que a roupa é como um uniforme", diz Rita Santos, presidente da Associação Nacional das Baianas de Acarajé e Mingau. "Na avenida Sete de Setembro eles não usam roupa, querem colocar a bíblia em cima da bandeja? aí eu bato, chamo a vigilância sanitária." Os evangélicos se incomodam pelo fato de - no candomblé - o acarajé estar ligado a Iansã. Portanto, medidas como colocar a Bíblia ou o óleo ungido na bandeja são uma tentativa de profanar aquele alimento - mesmo fora de um contexto religioso.

Para se refrescar com grupos evangélicos, há quem tente defender que o acarajé é apenas uma comida, sem relação religiosa fora dos terreiros. "Mas para as baianas que não são evangélicas, ver o acarajé como qualquer outra comida também não é bom, porque são herdeiras de Iansã", diz a antropóloga Débora Simões. "Não dá para comparar com um hambúrguer. É algo que tem uma história, uma origem que é negra e precisa ser valorizada".


Para o pesquisador Luiz Antonio Simas, o avanço evangélico tem gerado reações em comunidades ligadas a essas manifestações culturais - como escolas de samba. Um exemplo é o fortalecimento dos enredos de temática afro-brasileira, algo que foi forte nos anos 1990 e início dos anos 2000, mas que vinha se desvanecendo. "No ano passado, a Grande Rio ganhou o Carnaval falando de Exu", lembra Simas. O mesmo se repete agora em 2023. Império Serrano e Grande Rio levaram para a avenida enredos sobre Arlindo Cruz e Zeca Pagodinho, mas com sambas que fazem referência à cultura do terreiro na trajetória dos dois. A Paraíso do Tuiuti falou sobre os búfalos da Ilha de Marajó, mas relacionando os animais aos mitos de Iansã.